terça-feira, julho 24, 2007

Novas reflexões sobre a tragédia do Airbus

Confirmou-se a tese central de que o desastre da TAM deu-se num contexto de maximização de lucros. O governo admite que, mesmo depois do caos na malha aérea, aceitava o sistema deixado por seu anterior no qual as companhias definiam a política pública para o setor.

Bernardo Kucinski

Primeira nova reflexão
Confirmou-se por completo e ganhou musculatura a tese central do meu primeiro comentário, então apenas intuída, de que o desastre da TAM deu-se num contexto de maximização de lucros. A estratégia das companhias, que fez de Congonhas um centro nacional de redistribuição de passageiros (“hub”), foi explicada por Daniel Ritter no jornal Valor da sexta (20) e confirmada elo executivo da TAM José Hélcias, no Estadão desta terça (24):

“.. O modelo de negócios em vigor – aproveitamento de até 14 horas por dia das aeronaves para oferecer tarifas que nos últimos anos ficaram congeladas e até caíram - só se sustenta com o uso de hubs,” escreveu Daniel Ritter. “A centralização em Congonhas, com conexões para todo o país, permitia um maior aproveitamento das aeronaves, estávamos voando 14 horas por dia, contra 7 horas na década passada”, disse José Hélcias.

Nosso leitor Valdisnei diz que as companhias reduziram drasticamente o número de mecânicos de manutenção por aeronave. O Airbus da TAM voava há uma semana sem consertar o reverso, apesar do manual da empresa e normas da Anac obrigarem seu uso em pistas molhadas (1). Nem dava tempo de consertar. Só naquele dia, o avião já havia feito seis vôos, dois deles pousando em Congonhas. Em uma única semana, o Airbus A320 prefixo MBK fez nada menos que 43 vôos.

Nosso leitor Marco Nabuco lembra o cartaz exibido orgulhosamente pela TAM anos atrás, com os sete mandamentos do Comandante Rolim, fundador da empresa: “Nada substitui o lucro”, dizia o primeiro mandamento. Nessa lista, a segurança vinha em terceiro lugar. E o quarto mandamento falava de novo em lucro: “a maneia mais fácil de ganhar dinheiro é não perder”.

Esses mandamentos expressam o que os executivos modernos denominam “missão da empresa”. Eles mostram que a TAM foi instrumental na introdução da filosofia que transformou as concessões de serviços púbicos de transporte, na era neoliberal, em máquinas de fazer dinheiro.

Segunda nova reflexão
Ao anunciar a desativação de Congonhas como “hub”, o governo admite que, mesmo depois de instalado o caos na malha aérea, continuava aceitando criticamente o sistema deixado pelo governo anterior no qual as companhias definiam a política pública para o setor. Essa passividade estava implícita no meu primeiro comentário, mas não suficientemente enfatizada.

É o papel de um governo democrático impor limites ao mercado. Essa guinada de 180 graus, junto com outras recentes, entre as quais a valorização da caderneta de poupança (contra vontade dos bancos) e a proibição ao plantio de cana no Pantanal, pode sinalizar um novo modo de governar, liberto da ideologia neoliberal.

A tragédia trouxe assim o governo Lula à sua encruzilhada maior: ou parte para uma política verdadeiramente desenvolvimentista, que atropele a burocracia, ou será por ela atropelado de morte. Esse tipo de administração está obsoleto. Bastam os números do tráfego aéreo, que cresce a taxas de 20% ao ano.

Os mesmos jornais que apóiam os cortes no orçamento em nome do superávit primário trazem números constrangedores de como o contingenciamento – instrumento principal dessa política neoliberal – trava o PAC e impediu até mesmo a aplicação dos dois fundos aeronáuticos, com mais de R$ 2 bilhões em caixa oriundos de taxas já recolhidas para melhoria do setor.

Exacerba-se a contradição entre o desenvolvimento das forças produtivas e uma administração burocrática amarrada por leis e regulamentos concebidos duas décadas atrás para administrar a estagnação e não o crescimento. Na crise aérea, o governo Lula já é tratado como um estorvo.

Terceira reflexão
Desde o primeiro momento, deu-se a exploração político-partidária da tragédia, pela mídia e pelos principais líderes tucanos, José Serra e Tasso Jereissati. Assim como desastre se dá no contexto de uma crise generalizada do tráfego aéreo, sua politização também é uma extensão natural do processo de linchamento do governo Lula que vem desde o “mensalão”.

O ataque começou no momento mesmo da tragédia, quando os âncoras, sem informação suficiente para comentar as cenas espetaculares do incêndio, fixaram-se obsessivamente no problema da pista. Mesmo porque a pista foi liberada ainda sem as ranhuras previstas no projeto e o caos aéreo já durava dez meses.

Mas já naquela noite, os repórteres do Estadão ficaram sabendo que o avião voava há uma semana com o reverso travado: “Na noite do acidente , quatro comandantes confidenciaram à reportagem do Estado que o Airbus 320, destacado para o Vôo JJ3054, de Porto Alegre par São Paulo, voava com um dos reversos travado – ou ´pinado´, no jargão dos pilotos.” (2)

Só que o Estadão preferiu desprezar esse verdadeiro furo de reportagem que poderia mudar o rumo do noticiário. A Folha nem sabia do defeito no reverso. No dia seguinte, quarta-feira, Eliane Cantanhêde mandou à redação um primeiro diagnóstico que sensatamente apontava para: “falhas humanas e de equipamentos” como causas prováveis do desastre, num contexto de falta de ranhuras na pista, caos no transporte aéreo, stress dos pilotos e “ganância das companhias” (3). Mas os editores preferiam acusar Lula diretamente pelas mortes em chamada de primeira página da edição da quinta.

Nessa quinta à noite, o Jornal Nacional decide dar o destaque merecido à informação de que o avião voava com defeito no reverso. É como se tivesse havido um racha na frente midiática que protegia a imagem da empresa. Mais do que isso: reafirma-se o caráter do Jornal Nacional como instituinte da agenda nacional de debates. O “deu no Jornal Nacional” obrigou os dois jornais paulistas a darem manchete na sexta ao defeito do avião.

Mas a frente anti-Lula se recompõe parcialmente no sábado. William Bonner só faltou pedir desculpas pelo furo do dia anterior. E os dois jornais desprezaram o laudo do IPT divulgado na tarde do dia anterior, atestando que a pista nova estava em condições perfeitas de funcionamento, com índices de aderência e compactação muito acima dos limites mínimos exigidos pelas normas. A Folha deu num canto de página interna. O Estadão nem deu.

Felizmente, não é da natureza do jornalismo numa democracia omitir informações relevantes, menos ainda numa tragédia que matou mais de 200 pessoas. Aos poucos, a narrativa única e deliberadamente imprecisa que culpa a pista e poupa a TAM vai fissurando. A própria Folha traz mais e mais informações, numa narrativa paralela, de que avião voava com defeito e que esse defeito era relevante. A última é de um especialista em Airbus criticando a pouca importância dada a defeitos no reverso pelos manuais do fabricante do avião. Só que, nesse ínterim, o sensacionalismo do noticiário sobre as condições da pista levou ao boicote total das duas pistas em dia de chuva, pelos pilotos, ampliando ainda mais a crise.


(1) Conforme revelação do blog de Josias de Souza três dia depois, sábado, 21/07/2007.
(2) O Estado de S. Paulo - 20/07/07, dois dias depois.
(3) "Fatalidade?" - Folha de S. Paulo, 19/07/07



Bernardo Kucinski, jornalista e professor da Universidade de São Paulo, é colaborador da Carta Maior e autor, entre outros, de “A síndrome da antena parabólica: ética no jornalismo brasileiro” (1996) e “As Cartas Ácidas da campanha de Lula de 1998” (2000).

Nenhum comentário: